sábado, 21 de março de 2009

Deadly words

Uma destas noites quentes de Inverno, sentei-me no parapeito da janela do quarto. Era um vigésimo andar, mas mesmo assim pus os pés fora da janela e não tive medo. Outrora sentiria vertigens, mas esse e outros medos faziam já parte de uma outra era.
O bairro estava particularmente silencioso, mas não me apercebi logo do que isso significaria. Fiquei a observar os vizinhos do prédio em frente. A noite já não era uma criança, portanto eram poucas as janelas iluminadas.
Reparei que o "soldado" estava acordado, parecia estar a ver televisão. Conseguia ver o seu ar concentrado enquanto a sala mudava de cores rapidamente. Parecia-me estar sozinho. Do que eu sabia dele, era um rapaz solitário, era jovem, tinha ido para a tropa e havia regressado duma missão qualquer há pouco tempo. Era um jovem simpático, atencioso, focado no seu objectivo de proteger o país.
Soltei uma gargalhada. Ali estava eu, a meio da noite, a espiar vizinhos e a recordar mentalmente tudo o que eu sabia deles (e não era pouco...), tal qual uma velhinha de oitenta anos.
Mesmo assim, continuei a espiar o rapaz, talvez algo me dissesse que o devia estar a presenciar quando aconteceu.
Apenas vi o rapaz cair do sofá sem se levantar e uma sombra escurecer a sala.
Levantei-me rapidamente e voei para o prédio em frente, quando cheguei ao piso dele, a porta estava aberta. Seria uma armadilha?
Entrei e reconheci a sua presença.

-Estava à tua espera...-disse-me ela do fundo so seu manto negro.
-Porquê ele? - Não consegui esconder a ira na minha voz.
-Calma, rapariga! Já sabes que eu não posso fazer nada, é o meu trabalho. Tem de ser feito.
-Porque levas um rapaz bondoso, jovem, que tanto quis ajudar o seu país, assim como toda a gente em volta dele?
-Preferias que levasse um velho fútil e egocêntrico? Parecia-te mais justo?- riu-se. Não havia qualquer emoção naquele riso.
-Não, mas... - fiquei a olhar o corpo do vigoroso rapaz. Nunca falara com ele, no entanto não podia deixar de sentir pena pela partida de mais uma pessoa. Acho que nunca vou aceitar. Ela interrompeu os meus pensamentos:
-Sabia que hoje te iria ver. Já tinha saudades tuas, sabes? Das tuas filosofias todas e do que é bom e mau. Hoje estás muito calada, até.
-Não estive muitas vezes contigo. Nem nunca vi a tua cara, apenas ouço a tua voz, sinto a tua presença. Porque é assim?
-As pessoas só me vêem uma vez na vida, rapariga. Quem me vê não pode continuar a existir, pelo menos neste mundo. Tu és um caso diferente. Nunca me viste no entanto eu faço parte da tua vida, inevitavelmente. E aqui estamos nós a conversar.
Sim, de facto, não se pode dizer que falar com a Morte seja algo corriqueiro e banal. No entanto, na minha vida, nada se encaixava nesses adjectivos.
-Nunca te sentes arrependida ou algum pesar na consciência, por causa do teu trabalho? - perguntei-lhe.
-Não. Tens de perceber que não existem vidas mais valiosas do que outras, tudo depende dum ponto de vista. Ou talvez não passe tudo de um jogo, quem sabe? Eu apenas cumpro ordens. E não, não te vou dizer de quem recebo ordens.
-Se é tudo um jogo, onde se encaixa a minha personagem?
-Isso é o que tu própria vais ter de descobrir...
-Este rapaz não teve a oportunidade de descobrir qual era a sua função no jogo.
-Muita gente não chega a descobrir! Mas acho que este rapaz descobriu, sim. Bem, ainda tenho muito trabalho para fazer. Foi um prazer ver-te. Havemos de voltar a falar.
Não me despedi (o que haveria de dizer? Que foi um prazer?!), apenas voltei costas e caminhei lentamente para a minha casa.
Fiquei a pensar mais uma vez no meu papel neste mundo. Tantas teorias, tão poucas certezas...

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