O autocarro seguia o seu itenerario habitual, circulando pelas ruas movimentadas do centro da cidade, em plena hora de ponta.
"Não acredito neste trânsito, vou chegar atrasado à festa da minha netinha! Já está tão crescida... 5 aninhos! E pensar que ainda ontem me encheu a vida de alegria..."
"Agir naturalmente. Vou sair na próxima paragem e tenho a certeza que o velhote não dará pela falta da carteira até lá. E mais estes telemóveis... Parece que hoje facturei alguma coisa..."
"Será rápido e indolor. Ninguém terá tempo de me salvar nem imagina que eu esteja aqui..."
"Esta reforma parece cada vez mais pequena, mal tenho dinheiro para pôr pão na mesa. E pensar que tanta gente depende de mim..."
"Talvez seja hoje, tenho a certeza que ele me vai pedir em casamento hoje! Estou tão ansiosa. Amo-o tanto..."
"Probabilidades, Fernando Pessoa, Freud... Não tive atenção nenhuma nas aulas de hoje. Tenho que rever tudo quando chegar a casa, que seca..."
"Aquele rapaz é tão giro! Adoro o estilo dele. Hmm, belo rabiosque..."
"Meu, topa-me aquela dama. Atinadinha, mas gira..."
De repente, um carro atravessa no sinal vermelho e aproxima-se a grande velocidade do autocarro, batendo violentamente contra ele.
As pessoas gritam, tentam-se agarrar, caem, os vidros partem-se. O chão do transporte público enche-se de sangue. Sangue de inocentes.
O INEM chega ao autocarro. Os médicos socorrem as vítimas que são retiradas dos destroços.
Não há mortos, mas alguns feridos graves.
Uma das médicas reconhece uma das vítimas.
-É a minha irmã! Como é que ela está?
-Tem uma hemorragia grave na zona do abdómen, ela está inconsciente. É melhor ires tratar dos outros feridos, eu trato desta.
-Espera! Ela não devia estar aqui, devia estar a 200 km..! Deixa-me ver o que é isto... É uma carta...
-Maria, depois tratas disso. Concentra-te! A tua irmã já está a ser cuidada. Temos muitos feridos...
Mas ela já não ouvia, todos os sons exteriores eram abafados. Desdobrava cuidadosamente a carta ensaguentada que retirara do bolso da irmã:
"Maria, sei que serás a primeira a saber o que me aconteceu. Quero que tu dês a notícia aos pais, explica-lhes a situação, suaviza-a da melhor forma que puderes.
Sei que é dificil aceitar, mas compreende que foram muitos anos de sofrimento.
Eu já não estava a viver, de qualquer forma, era apenas uma alma perdida no meio deste mundo que não me pertence. Talvez aquilo que aprendemos na Igreja seja verdade, talvez eu vá para o Céu e lá encontre a felicidade.
Não sei, mas sei que chegou a hora de dizer adeus.
Demasiados segredos, demasiadas mentiras, demasiado silêncio! E a dor, matou-me aos poucos. O que resta é o meu corpo.
Não sofrerei, informei-me e vou tomar a quantidade certa de comprimidos. Não deixarei qualquer hipotese.
Adeus, irmã. Foste a única que alguma vez amei de verdade."
As lágrimas corriam-lhe pela face. Então era esse o plano, suicidar-se numa cidade desconhecida.
Destino ou não, a situação não correu da forma como ela planeara, mas estava agora na maca duma ambulância.
Mais tarde, a irmã de Maria recuperou e Maria insistiu para que fosse seguida a nível psiquiátrico. Martirizava-se por nunca se ter apercebido da dor da irmã, mas agora iria ajudá-la e conversaria mais com ela, escutaria os seus poblemas, dar-lhe-ia atenção redobrada.
"Deus escreve direito por linhas tortas" dizem. Neste caso, sim. Não em todos.
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